Foto: Jornal A Razão (Reprodução)
"Foi uma semana agitada em todo o país, e Santa Maria não ficou para trás. Aqui, felizmente, a movimentação foi mais agradável, com muita festa, com muito sorriso e, no seu encerramento, a presença da Miss Rio Grande do Sul 68, Elizabeth Borella Finardi, que veio participar dos festejos do encerramento de mais um concurso de sargento da Brigada Militar".
O texto acima foi publicado na parte inferior da capa de um dos cadernos do jornal A Razão de 15 de dezembro de 1968, dois dias depois do regime militar decretar o Ato Institucional nº 5 (AI-5), considerado o mais radical do período de intervenção das Forças Armadas nos destinos do Brasil.
A capa desse caderno traz como manchete as notícias que movimentaram a semana, mas o AI-5 é tratado como assunto periférico. Há uma foto do presidente Costa e Silva, que editou o documento que simbolizou a ditadura, e, bem abaixo, a referência às medidas arbitrárias. O destaque maior fica por conta de outros assuntos, entre eles notícias policiais e registros de formaturas e festas universitárias.
A Razão era o periódico local e, na época, pertencia ao grupo Diários Associados, império de Assis Chateaubriand, apoiador do golpe que colocou os militares no poder. Na edição da sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, não há qualquer referência às medidas que, durante 10 anos, endossaram atos arbitrários e abriram os corredores dos chamados "porões" onde presos políticos eram torturados.
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O AI-5, aliás, teve pouca repercussão no Coração do Rio Grande. Isso se explica porque as cassações de vereadores da cidade ocorreram em atos anteriores, como o AI-1 e o AI-2, que tirou o mandato do médico Eduardo Rolim (MDB), em 1966.
- Em 68, eu já não era mais vereador e não frequentava mais a Câmara porque era impedido de entrar nesses lugares, mas não tem nada a ver com o AI-5, porque me cassaram os direitos políticos num dos atos anteriores. Só lembro da comoção no país - recorda Rolim, hoje com 87 anos.
Rolim, que também perdeu o cargo de professor de Medicina na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) por conta de suas posições políticas, afirma que praticamente não houve oposição ao AI-5 na cidade, nem mesmo na universidade.
- Naquela época, o pessoal tinha muito medo de sair para a rua e fazer protesto - relembra.
A pouca repercussão do AI-5 no Legislativo municipal naquele turbulento dezembro de 50 anos atrás também se deve, possivelmente, ao fato de a legislatura da época estar se encerrando, e alguns vereadores não terem concorrido ou não terem conseguido a reeleição. Na primeira sessão após o Ato Institucional, realizada na noite de 16 de dezembro de 1968, a preocupação dos edis foi a eleição da Mesa Diretora. Nas atas dos dias 19 e 26 de dezembro há vagos registros relacionados à situação do país, nenhum, porém, contestando ou defendendo as medidas que colocariam o Brasil em um regime de exceção.
O DOCUMENTO DO ARBÍTRIO
O que determinava o AI-5 e os resultados das medidas:
Direitos suspensos
- O Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi publicado no dia 13 de dezembro de 1968, pelo general Costa e Silva, presidente da República
- Considerado o mais radical do regime militar, o documento autorizava o presidente da República a decretar o fechamento do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, cassar mandatos de parlamentares e suspender direitos políticos dos cidadãos
- Na época, o presidente Costa e Silva fechou o Congresso Nacional por tempo indeterminado. O Congresso só voltaria a funcionar 10 meses depois
- O AI-5 acabou com as garantias individuais e suspendeu o habeas corpus, no caso de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular
- Teve como resultado a intensificação da repressão, com mortes e desaparecimentos, prisões arbitrárias e aumento da censura a artistas e à imprensa
- A vigência do AI-5 foi de 10 anos, vigorando até dezembro de 1978, quando foi revogado pelo presidente Ernesto Geisel
Justificativas para as medidas
- No texto do AI-5, o governo faz uma série de considerações para justificar as medidas, entre elas a "preservação da ordem e da segurança" contra a ameaça "subversiva"
- As medidas foram uma represália à Câmara que negou licença para que o deputado Márcio Moreira Alves (MDB) fosse processado por ter discursado, em setembro de 1968,contra a ditadura. Alves pediu que os brasileiros boicotassem as festividades de 7 de Setembro em protesto contra o regime, o que descontentou os militares no poder
NA CÂMARA DE 1968, POUCO DEBATEFoto: José Mauro Batista (Diário)
Cópia original do Ato Institucional nº 5 está encadernada na Câmara de Santa Maria e faz parte do acervo de leis
Os debates entre defensores e opositores do regime militar na Câmara de Santa Maria foram muito mais intensos no período anterior ao AI-5 do que depois da sua decretação. O fato de vereadores mais combativos, como o médico Eduardo Rolim, já estarem cassados em 1968 é, possivelmente, uma das explicações para o AI-5 "passar em branco" na tribuna da Casa do Povo.
O advogado, ex-deputado e ex-vice-governador João Gilberto Lucas Coelho, que foi vereador do MDB na legislatura 1973-1976, militava no movimento estudantil. Ele diz que não houve, na cidade, repercussão maior em 68 até pelo impacto das medidas.
- Um ato desses deixa todo mundo quieto. A partir de 1968, as coisas ficaram mais duras, mas a arrancada (1964) já foi ruim - diz João Gilberto, hoje com 73 anos.
Vereador da Arena em 68, o radialista Fernando Adão Schmidt, o Schmitão, lembra de embates entre Rolim e arenistas.
- O Rolim fazia discursos de arrasar. Eram discursos muito fortes contra os militares - conta Schmitão, hoje com 83 anos.
Schmitão era governista, mas diz que era "água morna" em relação aos confrontos ideológicos. Meses antes do AI-5, ele renunciou ao mandato e mudou-se com a esposa, a professora Maria Wardereza Cezimbra Schmidt, para os Estados Unidos. Mas o motivo foi outro: Wardereza foi fazer mestrado. Por isso, não acompanhou de perto.
Capitão reformado e atual presidente local do PSL, Oscar de Oliveira Ramos Neto ingressou no Exército em 1969 e chegou em Santa Maria em 1971, como sargento. Defensor do regime, Neto é sucinto ao comentar o assunto.
- Eu estava do lado certo, a mim o AI-5 não afetou - resume.
RAZÕES HISTÓRICAS
Doutor em História e professor da UFSM, Diorge Konrad afirma que houve pouca ou quase nenhuma manifestação contrária ao AI-5 na cidade, em 68.
- A ditadura conseguiu desestruturar o sistema de resistência antes do AI-5. Desde o início, foi muito violenta com os movimentos sociais, sindical e camponês, mas é claro que o AI-5 chancela a repressão e você tem o aprofundamento das cassações, tortura e censura - afirma.
Konrad acredita que a renúncia de Tarso Genro em 1969 (ele deixou a Câmara para se refugiar no Uruguai) foi uma das consequências do AI-5, assim como a prisão, em São Paulo, do santa-mariense Dartagnam Agostini, pelo DOI-Codi, no início dos anos 1970. Ambos eram da linha de frente contra o regime.
Em artigo publicado na página 4 desta edição, o santa-mariense Eros Grau, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), comenta sua prisão com base no AI-5.